Era maio de 1943, uma tarde de sábado, quando o time do São Paulo deixou, vaiado, o gramado do Estádio Municipal do Pacaembu. Estava moralmente derrotado, após empatar, por 1 a 1, com o Juventus, pela sétima rodada do Campeonato Paulista.

Àquela altura era pequena a perspectiva de que o clube vencesse o Estadual daquele ano e quebrasse a hegemonia de Palmeiras e Corinthians.

Em sua edição de 8 de maio, dia seguinte ao embate, A Gazeta Esportiva – na época, apenas um suplemento do jornal A Gazeta –, questionava o comprometimento da maioria dos jogadores e destacava o desempenho coletivo ruim do São Paulo contra o clube da Mooca.

“O onze sampaulino, inteiro, não possuiu a metade do impulso espiritual do competidor inferiorizado em potencial humano. (…) Ressalvaríamos nesse grupo um Zarzur, um Noronha, um Remo e um Leônidas. O mais nos pareceu um caos, um punhado de homens combalidos, dominados por um poder estranho e superior à sua vontade de movimentar as pernas e orientar o cérebro”.

PRIMEIRO, A DECEPÇÃO; DEPOIS, A CHACOTA
     Os médios (como eram chamados os jogadores de meio de campo, em 1943) Zarzur e Noronha e os atacantes Remo e Leônidas foram poupados de crítica naquela fraca jornada. Exceções em uma equipe em crise.

O empate era o quarto tropeço em sete partidas pelo Paulista. Antes, o São Paulo, bem cotado para a conquista do torneio, havia perdido pontos ao empatar contra Portuguesa, também por 1 a 1 (na 5ª rodada), e perder para Ypiranga (do então desconhecido goleiro Barbosa, na 2ª) e Corinthians (na 6ª).

barbosa2234
Barbosa, jogando pelo Ipiranga, em partida contra o SPFC, em 1943

A decepção era especialmente grande devido ao investimento feito naquele time. O SPFC tentava montar uma equipe para fazer história. Para mudar a história.

Em abril de 1942, contratou Leônidas da Silva – astro maior do futebol brasileiro e destaque nas Copas de 34 e 38 – junto ao Flamengo, por 200 contos de réis, a maior transação do futebol brasileiro até então.

Um ano antes, Waldemar de Brito – titular da Seleção Brasileira na Copa de 34, e Luizinho, ponta do escrete nacional nos Mundiais de 34 e 38, haviam sido os reforços.

Em 41 e 42, o clube foi, respectivamente, vice-campeão e terceiro colocado. No primeiro ano, ficou atrás do Corinthians, mas não lamentou o resultado, considerado um importante marco em um clube em reconstrução.

Na temporada seguinte, com as estrelas Leônidas, Waldemar, Luizinho, além dos competentes Remo e Pardal, time ostentou um ataque de respeito, com média de 4,05 gols por partida. Mas falhou, ao ser derrotado por 3 a 1, pelo Palmeiras, na penúltima rodada. Se vencesse, assumiria a liderança e poderia ser campeão com um empate no último jogo. No final das contas, terminou em terceiro, ultrapassado também pelo Corinthians.

O trauma foi grande. Desde a conquista são-paulina em 1931, 12 campeonatos haviam sido disputados, seis vencidos pelo Palestra/Palmeiras (32, 33, 34, 36, 40 e 42) e quatro pelo Corinthians (37,38,39 e 41). Em 1935 foram dois torneios, um ficou com Santos e outro com a Portuguesa (que disputara uma liga alternativa, por conta de uma cisão entre amadores e profissionais).

O domínio de Palestra e Corinthians deu origem, em 1943, à piada da moeda, segundo a qual o Paulista daquele ano, tal qual os últimos, seria decidido num “cara ou coroa” entre os clubes dos Parques Antártica e São Jorge. O São Paulo não seria campeão. Ou seria campeão “por milagre”. Se a “moeda caísse em pé”.

O ARGENTINO GENIAL

Em 1943, o SPFC perdeu o craque Waldemar de Brito no início da temporada. Mesmo assim, a expectativa pelo título aumentou, devido à contratação de Antonio Sastre, referência da Seleção Argentina e líder do esquadrão do Independiente, bicampeão nacional em 38 e 39.

Sastre substituiu Waldemar de Brito, como segundo homem na linha de cinco atacantes (o esquema vigente na época era o 2-3-5, com dois pontas, um centroavante e dois armadores formando a linha de frente).

Considerado por historiadores argentinos o pai do futebol moderno na América do Sul, Sastre era capaz de atuar em todas as posições de linha e exercer várias funções, mas era fundamental, sobretudo, na armação. Com ele e Leônidas, o São Paulo tinha em campo dois dos maiores futebolistas do mundo e, melhor ainda, estrelas com estilos complementares.

Os brasileiros conheciam bem o futebol de Sastre. O meia já havia enfrentado a Seleção Nacional sete vezes, com retrospecto favorável: cinco vitórias argentinas, um empate e uma derrota.

Em 1940, após vitória por 3 a 0 sobre o Brasil, no Parque Antártica, pela Copa Roca, a imprensa nacional se impressionou com futebol do craque. A Gazeta Esportiva, em 27 de fevereiro daquele ano, assim descreveu sua atuação de Sastre:

“O grande ‘gênio’ do quadro. Inteligência e abnegação. Ligando a defesa no ataque no setor esquerdo e direito, o grande avante fez tudo o que é possível a um jogador. Deu bolas aos seus companheiros, mostrou um repertório incalculável de jogadas magníficas, pormenores de alta classe, fintas elegantes e sem exagero e por fim, o tento extraordinário de poder e colocação. Um soberbo jogador”

Em 42, Leônidas da Silva não bastou. No ano seguinte, o São Paulo teria mais ainda. O maior do Brasil e um dos maiores da Argentina. Ambos, entre os melhores do mundo, especialmente em 1943, quando a Europa era consumida pela 2ª Guerra e a nata do futebol se concentrava na América do Sul.

EM 8 DE ABRIL de 1943, Sastre desembarcou em São Paulo, no aeroporto de Congonhas. Em matéria publicada no dia seguinte, a Folha da Manhã – precursora da Folha de S. Paulo – descreveu o momento histórico:

“Precisamente às 14h25, ouvem-se os primeiros roncos do avião Cruzeiro do Sul. Movimentando-se nesta ocasião os fotógrafos e os repórteres que se apresentam para entrar em ação. Depois de sobrevoar a pista em largos círculos, o Albatará vai descendo lentamente até ganhar o terreno firme do aeroporto. Sastre é um dos últimos a saltar do aparelho, após descer sua jovem esposa, carregando o primogênito do casal. Antoninho Sastre Filho, de apenas alguns meses de idade”.

Ao colocar os pés em solo paulista, Sastre, emocionado, agradeceu à recepção e prometeu brindar os torcedores do novo clube com o melhor do seu futebol.

Um desejo grande que tinha de um dia vir a integrar um conjunto brasileiro, de expressão como o Onze do São Paulo, que tem como figura Leônidas da Silva, um dos mais perfeitos cracks que tenho visto jogar, está finalmente satisfeito. Defenderei o meu novo clube com todas as forças do meu coração. Por intermédio de seu jornal, saúdo o grande povo paulista e, em particular, aos afeiçoados do clube mais querido da cidade.

Ao deixar a pista, Sastre foi cumprimentado pelos dirigentes Paulo Machado de Carvalho, Vicente Feola e Décio Pedroso. Em seguida foi abalroado por milhares de torcedores. Após abandonar o aeroporto, se hospedou com sua família no hoje extinto Hotel da Paz, na rua São Bento, centro de São Paulo, tradicional estabelecimento inaugurado no século 19, onde morou temporariamente.

Sastre, dizia, ao chegar em São Paulo, que ficaria apenas um ano no novo clube. Depois – imaginava o craque – retornaria à Argentina, para encerrar a carreira no Independiente, onde jogara por 13 anos.

Craque indiscutível mesmo para os mais céticos, mas veterano. Um homem que aos 32 anos deixara sua terra, onde era rei, para vir a São Paulo. Tal qual aconteceu com Leônidas, um ano antes, Sastre foi “acusado” de chegar já aquém de suas possibilidades, sem vigor, nem capacidade para jogar seu melhor futebol. A idade “avançada” e uma sequência inicial de jogos ruins criaram o temor que de o argentino pudesse fracassar, a ponto de torcedores rivais o apelidarem DeSastre.

1878.7.8-HOTEL-RUA-SÃO-BENTO-TURISMOpaz2
Hotel da Paz, a primeira casa de Sastre no Brasil

Mas a tentativa de decretar o destino do craque daria com os burros n’água.  Antes, o São Paulo tinha rapidez, talento e vontade. Faltava o equilíbrio, o organizador. No Independiente, Sastre liderara um histórico time, campeão em 38 (até hoje o melhor ataque da história do futebol argentino, com 115 gols) e 39. No Brasil, ao lado de Leônidas, Luizinho, Remo e Pardal, marcaria época também.

VAI O URUGUAIO PROBLEMÁTICO, VEM O PORTUGUÊS VENCEDOR
Nas três primeiras vezes de Sastre (duas pelo Paulista e uma em amistoso contra o Fluminense), o time não deslanchou. Duas derrotas e um empates. Outro tropeço, aquele contra o Juventus (esse sem a presença do argentino), foi a gota d’água que derrubou do comando técnico Conrado Ross, uruguaio que fez carreira como treinador no Brasil nos anos 30 e 40.

O SPFC não engoliu bem o resultado e chegou até a pedir anulação da partida por conta do que o clube julgou ser um erro de direito. O tricolor alegava que o árbitro Durval Valente havia assinalado falta a favor do Juventus antes que o São Paulo cobrasse falta marcada a seu favor.

erro de direito
Por “erro de direito”, SPFC quis anular jogo contra Juventus

O recurso daria em nada, mas aquele sábado – mesmo com a confirmação do empate – seria um marco da virada do clube. Ao final da partida, o São Paulo ocupava a vexatória quarta colocação, com 6 pontos perdidos (assim eram ranqueados os times naquela época), ao lado de Santos, Juventus e Ipiranga.

Palmeiras, com 1 ponto perdido, liderava, seguido de Corinthians, com 2, e Portuguesa, com 4. A julgar o habitual domínio do Trio de Ferro sobre os clubes menores, era difícil de conceber que uma desvantagem tão grande pudesse ser revertida, faltando 13 partidas.

Após o tropeço e a demissão de Ross, o SPFC trouxe para o comando da equipe um técnico inexperiente. O português Jorge Gomes de Lima, o Joreca, havia trabalhado como jornalista e árbitro.

Até 1940, escrevia para a Gazeta Esportiva. Em 1941 virou juiz de futebol, e, entre muitas partidas que arbitrara, destaque para a estreia de Leônidas da Silva no São Paulo, em 25 de maio do ano anterior, contra o Corinthians, no jogo de maior público na história do Pacaembu, 70,281 pessoas. Joreca naquela tarde entraria para a história graças a Leônidas. Não sabia que um ano depois iniciaria uma longa parceria com o Diamante Negro e outros craques.

Provavelmente, poucos pensaram em Jorge Gomes de Lima como solução para os problemas do Tricolor. Nascido em 7 de janeiro de 1904, em Lisboa, fizera de tudo na vida, mas como treinador ainda era uma incógnita. Havia iniciado a carreira no ano anterior, e tinha como única experiência o comando da seleção paulista de amadores.

tabela depois do empate contra o Juventus2
Tabela do campeonato após empate contra o Juventus

Como juiz de futebol, Joreca tivera ascensão meteórica. O ex-cronista de A Gazeta Esportiva arbitrou pela primeira vez no Campeonato Paulista, em 27 de julho de 1941. A partida em questão foi justamente do São Paulo, contra a Portuguesa, no Pacaembu. E o Tricolor, assim como em 1943, não foi além de um empate por 1 a 1. A partir daí, por dois anos, foi referência da arbitragem de São Paulo, chegando a mediar jogos como Santos 2 x 2 Corinthians, que decidiu o título em favor do alvinegro da capital, em 1941, além citada estreia de Leônidas. Ao todo, foram 31 jogos como árbitro no Campeonato Paulista. Sua última vez no apito foi em um duelo um tanto obscuro entre Ypiranga e Comercial, no estádio da Rua dos Sorocabanos.

Joreca era uma aposta, mas tinha a seu favor um histórico de sucesso nos diversos desafios sobre os quais havia se debruçado. Além do jornalismo e da arbitragem, o português já trabalhara como treinador de boxe e professor de esgrima.

A contratação do novo treinador encerrou uma série de reformulações no SPFC. Em 1943, já haviam sido contratados, além de Sastre, os médios Zezé Procópio – vindo do Palmeiras e integrante da Seleção na Copa de 38 – e Assad Zarzur – ex-atleta do Vasco da Gama, da Seleção Brasileira e do próprio São Paulo, nos tempos da Floresta.

A ARRANCADA

Apenas uma campanha irrepreensível faria o inexperiente Joreca cair nas graças da massa. Da mesma forma, só uma sequência perfeita combinada com tropeços de rivais recolocaria a equipe na briga. E foi isso justamente o que aconteceu.

Na primeira partida sob o novo comando, o São Paulo impôs 6 a 1 no Santos. Em tarde de Leônidas, que marcou três vezes, o Pacaembu deu as boas-vindas ao novo/velho São Paulo.

Em festa, o estádio municipal festejou a goleada, enquanto a imprensa saudava a boa atuação do time. “Voltou a sair sol no nebuloso céu tricolor… Claridade, luz absoluta na conduta deste “onze” enigmático, caprichoso e sensível”, resumia a abertura da reportagem de segunda-feira de A Gazeta Esportiva, em 17 de maio. Essa seria a primeira de uma sequência de 12 vitórias no Paulista, que recolocou o São Paulo na briga pelo título. Na segunda partida da sequência, outra goleada: 8 a 1, na Portuguesa Santista.

Na última vitória do São Paulo sobre o Palestra Itália, em 9 de julho de 1942, Joreca estava em campo. Era árbitro no 1 a 0 válido pela Taça Cidade de São Paulo. Pelo Paulista, não vencia o Alviverde desde 1941.

Todos os fatores psicológicos que tantas vezes remoeram a cabeça dos são-paulinos, naquela tarde pelo menos, passariam longe do Tricolor. Após derrotar a Portuguesa Santista, em mais uma tarde de gala de Leônidas, novamente autor de três gols, o Time da Fé foi confiante de que poderia, finalmente vencer o clássico que naquele ano foi batizado “Choque Rei”, ou “Cotejo Rei”. Em sua edição de 12 de junho, o termo, popular ainda hoje, aparece pela primeira vez nas páginas da Gazeta Esportiva.

Naquele momento, o título de 1943 ainda era improvável, apesar do bom futebol que o Tricolor passara a jogar. Os pontos desperdiçados no começo da competição pareciam um prejuízo irreversível.

Como em 1942, o Palmeiras enfrentava o São Paulo como favorito. Era o atual campeão e contava com vantagem de três pontos na tabela. Excetuando o empate diante da Portuguesa, cumprira irrepreensivelmente suas obrigações. Vencera o Corinthians e todos os outros compromissos.  Só a vitória manteria o Tricolor na briga.

A torcida alentava o clube; mesmo nas vacas magras, o Grêmio Sampaulino – primeira torcida organizada do Brasil – e também os seguidores não uniformizados estiveram sempre no estádio municipal. Naquele dia, o apoio seria ainda maior.

Em 1943, além do campeonato de futebol, acontecia, paralelamente, o torneio de melhor torcida. Ao passo que o São Paulo se recuperava na tabela, o campeonato das uniformizadas seguia a todo vapor.

O São Paulo podia ter menos títulos que seus rivais naquele período histórico. Mas sua torcida, pelo menos, fazia jus a um dos apelidos: o Mais Querido. Ajudado pelo fato de mandar jogos no Pacaembu, o clube era o dono das maiores rendas do campeonato, e mesmo nos clássicos, em que as massas se mobilizavam e era natural que os contingentes de apoiadores de Corinthians e Palmeiras fossem maiores, as estatísticas mostravam uma força surpreendente dos tricolores. Até aquele momento da competição, em nove jogos, o Tricolor, no Pacaembu, arrecadara Cr$ 907.768,00, ostentando uma média de Cr$ 100.863,00 por partida. Corinthians e Palmeiras, que não mandavam todos os seus jogos no estádio municipal, registravam até esse período médias de Cr$ 94.463,00 e Cr$ 76.149,00, respectivamente.

Mesmo a uniformizada do clube, o Grêmio Sampaulino, inicialmente um grupo de estudantes de colégios de elite, com o tempo se tornou uma organização popular e “populosa”. Em dois anos em jogos do São Paulo, o recorde de renda do Pacaembu já havia sido batido duas vezes, as duas em confrontos com o Corinthians, nos jogos pelo primeiro turno de 1942 e 1943.

Dessa vez, havia novamente a expectativa de um recorde de renda. A tensão que habitual na cidade em semanas de clássico pairava no ar novamente, dessa vez com o agravante de que o São Paulo subitamente emergira para se tornar a potência que seus torcedores esperavam. Após duas vitórias os são-paulinos acreditavam novamente, senão no título, pelo menos em uma vitória sobre o Palmeiras, o que àquela altura valeria quase como um título e seria, no mínimo, o princípio da afirmação da qual necessitava o SPFC para alcançar seus objetivos.

As rendas do Choque-Rei vinham crescendo vertiginosamente desde a inauguração do Pacaembu. No clássico entre as duas equipes no primeiro turno de 1941, as bilheterias do estádio registraram Cr$ 59.540,00. Um ano depois, no jogo do gol de bicicleta de Leônidas, São Paulo e Palmeiras jogaram para uma renda de Cr$ 242.239,00. E o jogo seguinte, marcado para 13 de junho, prometia bater esses números. Vivia-se em São Paulo um tempo em que cada fim de semana de clássico tinha cara de data histórica, e aquele não seria diferente.

anito
Anito posa com uma bicicleta na Gazeta Esportiva

Quando a multidão saudou as equipes no Pacaembu, Leônidas não estava em campo. Em sua edição de sábado, em 12 de junho, A Gazeta Esportiva exibia na capa uma foto de Anito, o jovem centroavante que substituiria o Diamante Negro, e a manchete: “Protagonistas da batalha”. Anito – hoje um completo desconhecido – não aparecia no corpo da matéria, apenas na foto, montado em uma bicicleta. No texto, que trazia pequenas notas sobre as condições de cada jogador para a partida, a parte dedicada a Leônidas indagava:

“Estaria a bicicleta avariada? Não será arma secreta? Se a ausência se confirmar, Anito jogará em seu lugar. Será capaz Anito de estrear repetindo os ‘goals’ que fazia nos tempos de Bangu?”

Anito veio do Rio para o São Paulo como promessa e estreou contra o Palmeiras. No final, mesmo sem Leônidas, vitória por 2 a 1.

O São Paulo atingiu ontem o seu máximo objetivo, o seu supremo ideal, que seria vencer o líder, fazê-lo descer e renovar outra vez, para o segundo turno, suas possibilidades”.

spfc vence palmeiras
Registro do gol de Anito, na vitória sobre o Palmeiras, por 2 a 1

Anito, aos 14 minutos de jogo, abriu o placar. Os tricolores tiveram ainda um gol de Pardal anulado e um pênalti desperdiçado. Villadoniga, aos 36 do primeiro tempo, empatou.

O empate ameaçou reavivar antigos fantasmas. Aos 19 minutos, porém, Remo desempatou para o Tricolor. Os minutos restantes, surpreendentemente, foram tranquilos. Naquele fim de partida, palmeirenses, apesar da campanha quase perfeita na competição, pouco ameaçaram.

Esse jogo marcou a quebra de outro recorde de renda do futebol nacional (Cr$ 367.304,00).

***

SEIS VEZES SASTRE…

Depois de triunfar ante o Palestra, vieram as vitórias sobre SPR, por 2 a 1, Comercial, também por 2 a 1, Jabaquara, por 3 a 2, Ypiranga, por 2 a 1, e Portuguesa, por 3 a 0.

António Sastre criara em seu novo time a fina sintonia que regia seus outros esquadrões. Se Leônidas era o homem dos gols, dos dribles, da volúpia, o astro que atraía as multidões para o campo, Sastre fazia o time inteiro render. Desde que chegara, Leônidas fizera mais gols, Luizinho também. Remo tinha mais tranquilidade para se infiltrar, e os médios, mais condições para subir para o ataque.

“Naquele time ninguém ficava parado. Se os médios avançavam, os meias ficavam para ajudar”, disse Azambuja, em entrevista concedida a mim, em 2009. “E o Sastre era quem melhor fazia isso, porque ele jogava bem em todas.” Integrante do quadro de aspirantes da equipe, em 1943, Azambuja foi jogador do Tricolor nos anos 40 e morreu em 2012, aos 87 anos.

Armador, zagueiro, médio. De tudo, faltava, agora, apenas vestir os trajes do artilheiro. Sastre tinha, até 16 de agosto de 1943, 5 gols marcados com a camisa do São Paulo em 13 partidas. Anotar os tentos vinha sendo até então mais um passatempo que um hábito.

Naquela tarde, 16 de agosto, o artilheiro Sastre entrou em campo. Quis o acaso que o jogo mais marcante do argentino no que diz respeito a gols acontecesse em um palco menos adequado. Contra a Portuguesa Santista, no pequeno estádio da Rua Javari, zona leste de São Paulo, o argentino fez “chover”.

No primeiro turno, uma goleada por 8 a 1 do Tricolor ressaltaria a diferença entre as equipes. Naquela tarde, Leônidas fora a estrela do jogo, marcando três gols pela segunda vez na competição. Remo, com dois, Luizinho, com um, e Sastre, também com um, liquidariam a conta. Xavier faria o gol de honra para o time praiano.

O segundo encontro entre as duas equipes não foi muito diferente. O campo menor, teoricamente mais à feição de equipes mais preocupadas em se defender, não bastou para que a Portuguesa de Santos obtivesse uma contagem mais honrosa.

O que se viu foi mais um “massacre” do Time da Fé, que, depois dos vários tropeços, passava a acreditar no titulo. Se a partida em si não foi tão diferente da outra, Sastre fez, porém, com que ela se tornasse marcante. Em vez de apenas reger a orquestra, como de costume, se atreveu dessa vez a solar e, “sozinho”, fez a festa do público.

OS 9 GOLS TRCOLORES

  1. De pênalti, o argentino balançou, aos 10 minutos, pela primeira vez naquela tarde as redes do arqueiro Dutra.

Aos 32 minutos, outro baque para a Portuguesa Santista, pela expulsão de Armandinho.

  1. Aos 37, Luizinho marca o seu.
  2. Teixeirinha, que substituía Leônidas, poupado, marca o terceiro, aos 41.
  3. Sastre anota seu segundo tento, o quarto do Tricolor, aos 44 da primeira etapa. Após chute da entrada da área. “Dutra se estira defeituosamente e estava decretada a ‘tabela’ tricolor”, conta a reportagem de A Gazeta Esportiva de segunda-feira, 16 de agosto.

O termo “tabela” era usado naquela época para decretar uma vitória anotando quatro gols ou mais. Em 1942, o São Paulo havia marcado pelo menos quatro gols em 15 partidas, o que criou na torcida o hábito de gritar a cada goleada: “Oh, a tabela chegou, a tabela chegou”. Naquele sábado, a tabela veio já no primeiro tempo, e viria ainda mais.

  1. Aos sete da segunda etapa, 5 a 0 no placar. “Sastre colhe um portentoso sem-pulo que atinge selvagemente as redes”, conta o relato da Gazeta Esportiva.
  2. Aos 11 minutos do segundo tempo, Teixeirinha, após cobrança de falta de Luizinho, faz seu segundo na partida, o sexto do São Paulo.
  3. Aos 28, Sastre completa para o gol depois de passe de Pardal.
  4. Aos 38, o quinto de Sastre. Dutra está colocado no gol e o zagueiro Neves prepara-se para dar combate no argentino, que, antes de ser atingido, acerta a bola de primeira e a coloca no canto oposto do goleiro.
  5. Por fim, aos 43 minutos do segundo tempo, após receber de Remo, Pardal avança pela linha de fundo e cruza a bola, que fica à feição para a finalização de Sastre, que da entrada da área faz, tranquilamente, seu sexto gol.

A goleada por 9 a 0 seria a maior daquele campeonato, ao lado do triunfo arrasador do Corinthians, ainda na primeira rodada, sobre o Jabaquara. Mais do que isso, a atuação naquele jogo renderia a Sastre um lugar na história do São Paulo F.C. Ninguém havia marcado seis gols em uma partida com a camisa tricolor. O recorde segue intacto.

joreca2
Caricatura da Gazeta Esportiva, em 1943: os três técnicos: Joreca (SPFC), Del Debbio (SEP) e Amilcar Barbuy (SCCP)

CORINTHIANS, SANTOS E LIDERANÇA

A goleada contra a Portuguesa Santista foi a nona vitória seguida no Paulista e colocou o SPFC, após 16 rodadas, na vice-liderança, com 6 pontos perdidos, dois a menos que o Corinthians. O Palmeiras, que largara na frente, àquela altura era terceiro, com 8 pontos desperdiçados. Ainda que os rivais seguissem na briga, a convicção de que a moeda não cairia em pé já não era a mesma. O São Paulo havia parado de desperdiçar pontos, superando seu maior trauma: os clássicos.

As jogos seguintes não foram menos satisfatórias.  Contra o Juventus, no Pacaembu, Leônidas, Remo e Sastre fizeram os gols na vitória por 3 a 2, que colocou o clube em condição de assumir a liderança a duas rodadas do final do certame. Bastava seguir a sequência de vitórias (10 naquele momento) e derrotar o líder Corinthians para assumir a ponta.

Contra o Corinthians, na antepenúltima rodada, o Tricolor venceu, por 2 a 0, e se igualou ao rival na ponta da tabela, com seis pontos perdidos. Naquela partida, Leônidas, aos oito minutos do primeiro tempo, e Luizinho, aos quatro do segundo, anotariam para o São Paulo. “O São Paulo não teve pontos fracos”, resumiu a Folha da Noite, em sua edição de 6 de setembro. O Majestoso que decidiu a sorte são-paulina em 1943 bateu recorde brasileiro de renda: C$ 367.004.

rendas do choque rei
A corrida das rendas; São Paulo vivia a era de ouro do Pacaembu

Os dois fins de semana subsequentes seriam especiais. No domingo de 12 de setembro, o São Paulo saiu do Pacaembu para ir a Santos enfrentar o time da casa no Estádio Urbano Caldeira, a Vila Belmiro. Pressionado, o líder do campeonato derrotou, por 4 a 1, o Santos, e ficou à espera do grande jogo da semana seguinte, entre Palmeiras e Corinthians, que poderia lhe dar a liderança isolada da competição. E foi exatamente isso o que aconteceu, quando o Corinthians caiu por 3 a 1, oferecendo ao Tricolor, a uma rodada do fim do certame, a liderança isolada.

A situação era tensa. A derrota do Corinthians provocou uma situação em que qualquer um dos três grandes poderia ser campeão. Era mais provável que desse São Paulo – bastava um empate para tal –, mas em caso de vitória palmeirense no clássico, e triunfo corintiano no dia anterior, quando o time do Parque São Jorge enfrentaria a Portuguesa Santista, no Pacaembu, os três terminariam empatados, forçando a realização de um supercampeonato.

1943-6-13.folha da noite2
Manchete da Folha da Noite, após vitória sobre o Palmeiras

Para a imprensa e para o público não são-paulino, a realização do tal “supercampeonato” soava agradável. O desempate provocaria uma comoção ainda maior. Aquele campeonato, aliás, já vinha causando como poucas vezes se vira uma alteração nos fãs de futebol da cidade.

São Paulo já era uma metrópole. A maior cidade do Brasil. Mas era “uma cidade muito diferente. Tudo era diferente”, disse Paulo Machado de Carvalho Filho, em 2009, em entrevista a mim, durante a produção do Os Reis do Pacaembu. Paulinho de Carvalho, como era conhecido, morreu em 2010, aos 86 anos.

O filho do cardeal são-paulino Paulo Machado de Carvalho lembrava que na época um dos pontos de maior efervescência cultural era o restaurante Ponto Chique, que existe até hoje, no Largo do Paissandu, a poucos metros da antiga sede do SPFC.

“Tudo acontecia naquela região”, conta Paulinho, com um tom de voz que indica saudade, mas não melancolia. A cada noite reunia-se lá no Ponto Chique, e nos arredores das avenidas Ipiranga e São João, a “nata”, digamos, da boemia paulistana. Músicos, esportistas, atores, empresários, entre outros, passavam os fins de tarde no Centro de São Paulo.

“Tinha também o Juca no lado de frente. Foi quando surgiram grandes histórias sobre futebol”, lembra Paulinho, se referindo ao Café Juca Pato, Cafeteria frequentada por políticos, esportistas e artistas de teatro e cinema. “Os cinemas eram na São João, tudo lá, depois acabou vindo a Rua Augusta e os Shoppings e mudou completamente a cara.”

Entre os pontos nevrálgicos da cultura paulistana à época, o Ponto Chique era um dos mais ligados ao futebol. Seu dono, um italiano chamado Odílio Cechini, era diretor do Palmeiras, e o lugar servia como “salão de festas” nas vitórias do clube alviverde. “Então, quando o Palmeiras ganhava, enchia de palmeirense”, relata Paulinho, “mas quando o São Paulo ganhava, nós íamos lá provocar. Mas era tudo numa boa”.

SÃO PAULO PAROU… 3 DE OUTUBRO, O DIA DA MOEDA

São Paulo e Palmeiras chegaram ao Pacaembu sem pontos de interrogação. Quando os jogadores do Tricolor foram dormir, na sede do Canindé, onde o time se concentrou, já se sabia que só o acaso interferiria na escalação da equipe que entraria em campo no dia seguinte. No Palmeiras, a mesma coisa. Leônidas, Lima, Sastre, Oberdan, Luizinho, Villadoniga. Todos os craques das duas equipes estariam em campo, conforme destacava o jornal A Noite, em sua manchete de sábado, 2 de outubro: “Sem pontos de interrogação”.

O SPFC era o favorito. Era isso o que se sentia nas ruas e se refletia nas manchetes de jornal, nos bares, restaurantes e nas conversas de roda por todo lugar. Em entrevista para A Noite, Friedenreich, primeiro craque da história do clube, corroborava a opinião de que o São Paulo era favorito. “Considero o quadro do São Paulo mais homogêneo”, dizia “El Tigre”, antes de ressalvar: “O fator psicológico pode ter uma influência negativa”.

Fried sabia o que estava dizendo. Afinal, o peso da partida era maior para o São Paulo – que não ganhava um título desde que o atacante do Tricolor era ele próprio, em 1931 – do que para o Palmeiras, atual campeão e dono já de oito troféus da competição. E os tricolores tinham tudo realmente para estar nervosos. Quando se vissem frente a frente com os palmeirenses, em mais uma tarde de domingo no Pacaembu, seria provável que os fantasmas das derrotas passadas voltassem a espreitá-los.

No futebol, em que as partidas são montagens simbólicas da sociedade e em que as derrotas dos atletas são tantas vezes, também, as derrotas dos seres humanos, seria compreensível que os jogadores do São Paulo adentrassem o gramado ressabiados, vacilantes até, para enfrentar a equipe que lhes impusera o revés mais duro. Supunha-se que os são-paulinos pudessem estar mais temerosos ou, no mínimo, ansiosos para bater o Palmeiras. Era novamente o confronto do campeão contra o desafiante e, em todas as vezes que disputara essa batalha, o Tricolor tinha saído derrotado.

A campanha aniquiladora que o São Paulo desempenhara a partir da chegada de Joreca seria colocada à prova naquele momento. O Tricolor tinha vencido todos os jogos desde então. Desta vez, ele só precisava empatar. Mas ninguém duvidava que seria este o jogo mais complicado.

Domingo, meio-dia. O Choque-Rei começa… fora de campo. Antes que a bola role sobre o gramado. Em todas as cercanias do Pacaembu e por toda a cidade de São Paulo tem-se início mais um confronto São Paulo e Palmeiras. Na poltrona, em casa, o palestrino liga o rádio para ouvir os comentários ácidos de Geraldo Bretas, na Rádio Cruzeiro do Sul. Pela Rua Desembargador Paulo Passaláqua, entram os cronistas, vestidos em ternos, gravatas e chapéus. A primaveril São Paulo daquele 3 de outubro acordara fria. As nuvens do céu acinzentado da capital anunciam chuva, ou, no mínimo, a tradicional, mas não menos inconveniente, garoa paulistana. O chapéu é uma boa pedida. Acima das numeradas, os cronistas se arrumam em seus lugares. Estão todos lá: Geraldo José de Almeida, da Rádio Record, Pedro Luiz, da Rádio Gazeta. Thomaz Mazzoni também marca presença; o Olimpicus assinará o relato e os comentários que parte da cidade lerá amanhã, empolgada, em A Gazeta Esportiva. Aos poucos, jogadores, dirigentes e torcedores chegam ao Pacaembu. Os morros do vale se encontram repletos de gente. Paulo Machado de Carvalho passa na cabine da Record, antes de se dirigir a sua tradicional cadeira número 32. Décio Pedroso, por sua vez, caminha pelos corredores, à espera do jogo. Higino Pellegrini, presidente do Palmeiras, desfila, também, pelas dependências do Pacaembu, exibindo sua elegante combinação de terno cinza, camisa branca e gravata preta. Além de um não menos apurado chapéu cinza, no melhor estilo gangster dos anos 20.

O clássico se espalha pelas ruas e atinge em maior ou menor grau quase todos os habitantes da cidade. O médio do time de aspirantes Azambuja não jogará, mas é um dos que escolhem ir ao estádio. Sem companhia, ele se dirige ao campo e se acomoda nas arquibancadas. “Eu ia sozinho. Preferia assistir sozinho porque eu ficava muito nervoso.” Paulinho também está lá. Ao lado de seu irmão, Alfredo, dos amigos Rui, Júlio e Juca Mesquita (herdeiros do jornal O Estado de S. Paulo) e de outros como Manoel Raymundo Paes de Almeida, ele lidera a bagunça nas arquibancadas. A turma toda faz parte do Grêmio Sampaulino. Sabem da importância de seu papel; mais que enfeitar o estádio municipal, ele têm que apoiar o time, carregar o São Paulo rumo ao título. Assim, das arquibancadas, saem os gritos:

– Arakan, Baran, Bakan! Arakan, Baran, Bakan!

E o estádio se volta para o grupo

Estubelei, estubelai! Ratimbum! São Paulo, São Paulo, São Paulo!

Completa a turma do Grêmio Sampaulino, para depois prosseguir:

Waik, Paik, Xaik, waik! Waik, Paik, Xaik, waik!

Timbum, timbum! Rá, rá, rá! São Paulo, São Paulo, São Paulo!

final de 43
Visão do Pacaembu, no dia da decisão, em 1943

SASTRE COMBALIDO

16 horas. Com tudo preparado, entram os jogadores em campo. Todos a postos para a disputa, que, como não poderia deixar de ser, começa quente. O lendário zagueiro Junqueira, um dos ícones da história do Palestra/Palmeiras, acerta violentamente Sastre, que, logo aos seis minutos de partida, vê sua participação comprometida. Após o incidente, Sastre sai de campo e passa alguns minutos sendo atendido por massagistas. Depois de breve conversa, volta ao gramado e, embora arrisque alguns piques em alguns momentos, o argentino não consegue ser o mesmo.

Um ano antes, no 3 a 1 que garantira o título ao Palmeiras, Junqueira fora acusado de desferir pontapés em Leônidas. A reincidência do zagueiro causa revolta nos tricolores e contribui para que a partida fique mais quente. Ao longo da decisão, 54 faltas foram assinaladas por árbitro Carlos Oliveira Monteiro, conhecido popularmente pelo apelido de Tijolo. Em campo, o futebol vistoso das outras partidas dá espaço a um jogo de muita disposição, mas pouca inspiração. No primeiro tempo, as equipes se dedicam mais a atacar. Na segunda etapa, porém, os dois, em especial o São Paulo, demonstram menos ímpeto ofensivo. O Palmeiras, incapaz de romper a defesa adversária, vê suas iniciativas frustradas, ao passo que o Tricolor, com Sastre machucado e, a alguns minutos do sonhado campeonato, joga com os nervos à flor da pele. O receio de Friedenreich de que o nervosismo pudesse estragar a qualidade técnica da partida se confirma e os últimos minutos se convertem em uma experiência angustiante, sem sinal das qualidades estéticas que caracterizavam o jogo do São Paulo em outras rodadas.

“Feiúra” essa que pouco importa nos instantes que precedem o momento mais importante da vida do São Paulo F.C. Um ano após fracassar diante do maior rival (o Palmeiras era sem dúvida o maior rival naquele momento), os são-paulinos voltam ao mesmo palco para dar cabo de sua revanche. À medida que o fim se anuncia a tensão se pronuncia. No relato para A Gazeta Esportiva, por Thomaz Mazzoni, o clima no Pacaembu:

“O jogo é todo fibra, todo obstinação… Nenhuma pausa, os jogadores não se esgotam, os torcedores tremem, uns porque o empate não se quebra, outros porque o fim não chega… Tudo é nervos, emoção e combatividade ao extremo. O jogo dança com… feição macabra, no campo sampaulino…  Parece que o “goal” decisivo poderá surgir a qualquer lance, mas o onze tricolor não passa de uma patrulha de desespero, à caça da bola, em primeiro lugar”.

1943-10-4-foto posada-jogo e torcida
Torcedora são-paulina, em outubro de 1943

Assim, os são-paulinos, esgotados de suas forças, veem o juiz apitar. O jogo acaba sem gols, e, com um empate em 0 a 0, a equipe de tantas goleadas, finalmente, é campeã.  “O estádio foi abaixo, a cidade também foi abaixo”, lembra Paulinho. O instante que decretou a conquista do São Paulo F.C. marcou um dos maiores surtos de êxtase e histeria que o Pacaembu já presenciara.  Como na estreia de Leônidas, os são-paulinos levam ao pé da letra a expressão Caldeirão. Com os braços erguidos, ateiam fogo em jornais e os sacodem no ar, formando milhares de fogueiras nas arquibancadas.

No campo, enquanto a maioria dos jogadores vibra e comemora, correndo às vezes sem direção, o tantas vezes contestado goleiro King, que jogara pela primeira vez no São Paulo em 1936, desaba em lágrimas solitárias, mas felizes. Ele, mais que qualquer outro, sabia o que aquele título significava.  Entre lágrimas e gritos, os eufóricos jogadores celebravam um feito histórico. Eles tinham feito a moeda cair em pé, e do modo mais improvável. Não se podia esperar deles pouca comemoração. A festa seria grande, intensa e se estenderia pelos dias seguintes.

O apito de Carlos Oliveira Monteiro, o Tijolo, marcou o início dos festejos pela conquista tricolor. Pela cidade, espontaneamente, os apaixonados seguidores do Clube da Fé exorcizavam seus fantasma em celebração do feito. Paulinho e sua turma logo, do Pacaembu, foram direto para o Ponto Chique, comemorar. Lá na mesa do restaurante do palmeirense Odílio Cechini, enquanto festejava com um grupo de torcedores, Paulinho assistiu ao compositor Denis Brian, também são-paulino, compor uma música “que viraria um hino do São Paulo naquela época”.

“Ele estava ao meu lado, com o violão nas mãos, quando começou a cantarolar: ‘Acabou a marmelada, acredite quem quiser, até a macarronada foi comida de colher. É, é, é, São Paulo campeão, a moeda caiu de pé’”, cantou, às gargalhadas, Paulinho, aos 85 anos, meses antes de morrer.

foto campeão
Manchete da Gazeta Esportiva, após conquista do campeonato de 43

A massa explodia em alegria, mas um são-paulino, em especial, não estava na capital paulista para acompanhar aquela festa. O capitão Porfírio da Paz, ausente em razão do serviço militar, que cumpria em Natal, estava certamente entre os mais emocionados com a conquista. “Naquela época o Porfírio era realmente o símbolo da torcida. Quando o São Paulo esteve para se extinguir, foi ele que mais lutou pela sobrevivência”, comenta Paulinho. “Ele saía por aí mobilizando os torcedores para reerguer o clube.”

Porfírio foi, certamente, um dos são-paulinos mais apaixonados de que se tem notícia. O hino oficial do clube é composição sua. Consta que ele teria assoviado a melodia enquanto caminhava na rua após ter sido despejado de sua casa. Porfírio vendera sua propriedade para financiar o recomeço do Clube da Fé.

Para Paulo Machado de Carvalho, companheiro de Porfírio nos primeiros anos do São Paulo, essa atitude, além de revelar o amor fora de comum de Porfírio pelo clube, resume seu caráter. “Não é preciso dizer mais sobre um homem que vendeu seu único patrimônio – sua casa – para dar início a este clube. Acho que isto diz o seu valor.”

Nacionalista, militar, José Porfírio da Paz, que hoje empresta seu nome a uma rua na zona norte de São Paulo, teve destaque na vida em alguns campos. Foi tenente, capitão, general, farmacêutico. Aventurou-se na política, chegando, inclusive a ser vice-prefeito e vice-governador de São Paulo, nos anos 1950 e 1960, respectivamente. Mas, para os que o conheceram, ele ara antes de tudo uma expressão do São Paulo F.C. “Ele era o São Paulo”, resume Azambuja. “Conheci o Porfírio quando ele foi pessoalmente conversar com o meu pai para que me deixasse jogar no São Paulo. Desde então, nunca vi ninguém tão apaixonado pelo clube.” Azambuja, conta que Porfírio, se irritava bastante quando falavam mal de seu clube do coração. “Ele ficava uma fera”. Porfírio pode ter se aborrecido vez ou outra com o futebol, mas essa certamente não seria uma destas. Naquele domingo ele, mesmo longe, era só alegria.

Se em Natal Porfírio celebrava, solitário, o campeonato de 1943, nas ruas de São Paulo a festa seguia. A maioria dos torcedores já voltava para casa, enquanto o Grêmio Sampaulino preparava uma marcha sobre as ruas da cidade em comemoração ao título. Se a campanha pela conquista já tinha sido espetacular, ainda mais impressionante prometiam ser as homenagens dos torcedores do Mais Querido ao feito de sua equipe. Ao longo dos últimos anos, a torcida são-paulina mostrara mais de uma vez sua força. Na chegada de Leônidas, 10 mil transformaram a estação do Norte num pequeno Pacaembu. Depois, por quatro vezes consecutivas foram os são-paulinos os responsáveis por quebrar o recorde brasileiro de renda em um jogo de futebol. No campeonato de 1943, o time tricolor fora o campeão de arrecadação. Para aquela noite, porém, os tricolores preparavam algo especial. Uma celebração inédita. Uma surpresa, que foi, contudo, adiada, devido à forte chuva que castigou o céu de São Paulo naquela noite.

Enquanto isso, do nordeste brasileiro, Porfírio deixava num pedaço de papel seus sentimentos em relação à conquista. A pedido de Thomaz Mazzoni, escreveu um pequeno artigo sobre a conquista de seu clube. Em palavras profundamente emocionadas, o texto, publicado na A Gazeta Esportiva na segunda-feira, dia 4, descrevia o momento que viviam os são-paulinos.

A CARTA DE PORFÍRIO DA PAZ: 

“Na hora radiosa em que se comemora, com ufania, o memorável feito do clube do meu coração, sagrando-se campeão de 1943, quero externar de público, o meu reconhecimento a Deus – dirigente supremo de nossos destinos pela alegria que temos, hoje, nos nossos corações, vendo o São Paulo F.C. atingir com suas próprias forças a meta do ideal alimentado durante tantos anos: Campeão Paulista! Depois de agradecer a Deus, justo é que eu agradeça, também, aos denodados ‘sampaulinos’ que formam as hostes poderosas da grande família tricolor: Companheiros de diretoria na pessoa de Decio Pedroso – conselheiros na figura de Piragibe Nogueira – torcida na de Manoel Raymundo – todos os bravos defensores da camiseta tricolor, técnicos instrutores e funcionários do ‘clube mais querido’. Fora dos quadros da família ‘sampaulina’ é também de justiça agradecer a colaboração preciosa da imprensa e rádio de nossa terra, no incentivo salutar de suas crônicas ponderadas e construtivas.

Pediu-me o caro Mazzoni – o brilhante e festejado Olimpicus – para escrever estas linhas sobre o campeão de 1943; e, preferi começá-las com a invocação de Deus, homem de fé que o sou, mesmo porque, foi a brilhante pena de Olimpicus que lançou, magistralmente em 1936, época da “via-crucis”do São Paulo F.C., num memoravel artigo, a idéia de chamá-lo de “o clube da Fé”! Sim, porque não fossem a fé em Deus e o amor que a gente consagra ao clube, dois fatores graniticos que nos sustentaram em todos os vendavais da luta crudelíssima dos primeiros anos, talvez hoje não estaríamos comemorando a conquista gloriosa do Campeonato de 1943. Abençoados sacrifícios de tantos companheiros, sublimes exemplos de abnegação, perseverança e tenacidade, admirável união em torno do pavilhão Tricolor, na estrada nem sempre suave da vida do clube!

Que Deus abençoe os destinos gloriosos do São Paulo F.C., agremiação que é um esteio indestrutível de brasilidade, civismo e fé, dentro da terra das bandeiras! Com o meu coração de humilde soldado da pátria, brasileiro acima de tudo, velho fundador do clube, lanço, agora, a todos ‘sampaulinos’ aquele apelo que fiz nos primórdios de vida do ‘mais querido’: Paz e União, trabalho e esforço, afim de que o São Paulo F.C. possa ser, sempre,um padrão de honra dentro do esporte brasileiro.

Ave! Campeão de 1943. Clube da fé – eu te saudo com todas as veras da minha alma, desejando-te um porvir glorioso e que siga a rota luminosa de uma existência fecunda, útil e benéfica à pátria estremecida.

Viva o Brasil.”

As palavras de Porfírio revelavam uma felicidade sem precedentes para os são-paulinos. Uma felicidade que deveria ser acompanhada de uma grande comemoração. Na noite de domingo, a chuva impedira o que planejavam os torcedores. No dia seguinte, novamente a água freara os planos da torcida.

Na noite de quarta-feira, porém, cumpriu-se o prometido. A partir das 19h30, uma multidão saiu da Rua 24 de maio, nas proximidades da sede do clube, para tomar as ruas da capital em apoteótica marcha de comemoração.

torcida-sp
Torcida celebra título tricolor com desfile pela cidade

Em festa, mas ordeiramente, os são-paulinos passearam pela capital paulista erguendo cartazes com homenagens a Porfírio da Paz e ao presidente Décio Pedroso. O jornal paulistano A Noite descreve, em reportagem publicada no dia 7 de outubro, a manifestação:

“Era incalculável a massa popular que se cotovelava naquele trecho da movimentada artéria central. E todo aquele povo vibrava de entusiasmo, dando expansão à sua alegria pela conquista do título por parte do tricolor”.

Esta multidão se acotovelava por ocasião da Marche aux Flambeaux, desfile à luz de velas que os tricolores já tinham prometido em 1942, quando o SPFC esteve perto de conquistar a Taça dos Invictos.  E assim, à luz de velas, a passeata seguiu. Animada por uma banda que “tocava sem cessar”, pedestres, motoristas e motociclistas, juntos, seguiam marchando pelo centro, enquanto um caminhão no meio da multidão carregava uma moeda erguida e trazia os dizeres: “E a moeda caiu em pé”.

De dentro da sede tricolor, na Dom José de Barros, Joreca, o presidente Décio Pedroso e o diretor Roberto Pedrosa acompanhavam os sons da apoteose. Quando os ruídos se inflamaram, o treinador e os dirigentes se dirigiram à sacada, e viram no Largo do Paissandu o mar de gente que os saudava. Aquele seria o auge da glória em 1943. Agora, sim – sabiam eles –, nada mais faltava.